RANGEL ADVOCACIA

Suspensão da execução fiscal afasta dupla garantia e permite habilitação do crédito na falência

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a suspensão da execução fiscal – determinada pelo artigo 7º-A, parágrafo 4º, inciso V, da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência – LREF) – afasta o óbice da dupla garantia e permite a habilitação do crédito público na falência. O dispositivo é uma inovação trazida pela Lei 14.112/2020, que atualizou a legislação sobre recuperação e falência.

Na decisão, o colegiado reafirmou seu entendimento de que não é possível ao fisco a utilização simultânea da execução fiscal e da habilitação do crédito na falência, sob pena de bis in idem. O relator do recurso em julgamento, ministro Luis Felipe Salomão, ressalvou a possibilidade de discussão, no juízo da execução fiscal, sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, assim como de eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis (LREF, artigo 7º-A, parágrafo 4º, II).

Impossibilidade de recebimento do crédito pelas duas vias

No caso analisado pela turma, a União postulou a habilitação de crédito em processo falimentar de uma sociedade de serviços médico-hospitalares. O magistrado da Vara de Falências e Recuperações Judiciais extinguiu a habilitação de crédito, sem resolução do mérito, ao fundamento de que não foi comprovada a desistência da execução pela Fazenda Nacional, configurando-se o bis in idem. A decisão foi mantida em segunda instância.

Ao STJ, a União alegou que ajuizar a execução não foi uma opção, pois, quando isso ocorreu, ainda não havia sido decretada a falência da empresa. Sustentou que seria impossível receber o crédito caso não fosse admitida a sua habilitação na falência, visto que o processo executivo foi arquivado para aguardar o desfecho do processo falimentar, no qual o pedido de habilitação foi extinto sob o fundamento do óbice da dupla garantia.

Concurso formal e concurso material na falência

Em seu voto, Salomão lembrou que tanto o Código Tributário Nacional (CTN) quanto a Lei 6.830/1980 (Lei de Execução Fiscal) dispõem que a cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, liquidação, inventário ou arrolamento. Decorrente disso, a Lei 11.101/2005 preceituou que a quebra – assim como o deferimento da recuperação judicial – não tem o efeito de paralisar o processo de execução fiscal, nem de desconstituir a penhora realizada.

O ministro explicou que esse entendimento sempre partiu da premissa da existência de dois tipos de concursos na falência: o concurso formal e o material. O formal – ou processual – decorre do juízo universal e indivisível competente para as ações sobre bens, interesses e negócios da falida.

“É certo que os créditos tributários não se submetem ao concurso formal (ou processual) instaurado com a decretação da falência ou com o deferimento da recuperação judicial, vale dizer, não se subordinam à vis attractiva (força atrativa) do juízo falimentar ou recuperacional, motivo pelo qual as execuções fiscais terão curso normal nos juízos competentes”, disse ele.

Já o material – ou obrigacional – é aquele pelo qual deverá o credor receber de acordo com a ordem de preferência legal. Segundo Salomão, “os credores tributários sujeitam-se ao concurso material decorrente da falência, pois deverão respeitar os rateios do produto da liquidação dos bens de acordo com a ordem legal de classificação dos créditos (LREF, artigos 83 e 84)”.

Jurisprudência reforçada pela Lei 14.112/2020

O magistrado salientou que, de fato, a jurisprudência do STJ sempre considerou que a opção pela habilitação implicaria renúncia à utilização do rito da execução fiscal previsto na Lei 6.830/1980, entendimento este que deve ser mantido e que, inclusive, foi reforçado com a publicação recente da Lei 14.112/2020.

Ele ressaltou ainda que, sob a vigência da Lei 11.101/2005 antes da reforma e da Lei Complementar 118/2005, o crédito tributário não se sujeitava à classificação de créditos, cabendo ao fisco prosseguir nas execuções fora da falência. Entretanto, segundo o ministro, a mudança promovida pela nova lei – a qual adotou a perspectiva da análise econômica do direito – revela a busca pela eficiência nos processos relacionados à falência, o que inclui evitar a sobreposição de formas de satisfação do crédito e a caracterização da dúplice garantia.

“A nova legislação estabeleceu procedimento específico denominado ‘incidente de classificação do crédito público’, a ser instaurado de ofício pelo juízo falimentar – uma forma especial de habilitação dos créditos fiscais na falência, e que enseja, conforme previsão expressa, a suspensão das execuções fiscais até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis”, esclareceu o relator.

No caso em julgamento, Salomão ressaltou que, embora a Fazenda Pública não tenha requerido a extinção da execução, consta que ela pleiteou o sobrestamento e o arquivamento do feito executivo, ato que torna aceitável o pedido de habilitação do crédito da União, de acordo com a inovação trazida pelo inciso V do parágrafo 4º do artigo 7-A da Lei 14.112/2020.

“Penso que, no presente caso, é cabível o pedido de habilitação de crédito da Fazenda Pública, haja vista que efetivado o pedido de suspensão do feito da execução fiscal, o que se mostra suficiente para afastar o óbice da dúplice garantia e, por conseguinte, da ocorrência de bis in idem“.