A comissão de juristas criada pela Câmara dos Deputados para elaborar o anteprojeto de reforma da legislação sobre lavagem de dinheiro realizou nesta sexta-feira (27) sua terceira audiência pública virtual. No encontro, foram ouvidos especialistas estrangeiros e brasileiros sobre a experiência em seus países.
A comissão é presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Reynaldo Soares da Fonseca. Também participaram do evento os ministros Antonio Saldanha Palheiro e Joel Ilan Paciornik. A comissão tem 19 integrantes, entre magistrados, membros do Ministério Público, acadêmicos e outros especialistas.
Segundo o ministro Reynaldo Fonseca, o objetivo dos encontros é avaliar a necessidade de revisão de pontos da Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.6 13/1998), que teve a sua alteração mais recente promovida pela Lei 12.683/2012. “Ouvir especialistas da Europa, da América do Sul, das nossas polícias e advogados é extremamente proveitoso e produtivo. É um momento histórico”, comemorou o ministro.
O relator da comissão, desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, informou que os trabalhos devem ser prorrogados até o início do próximo ano e que será realizada mais uma audiência pública com especialistas.
Legislação eficaz
O professor Peter Alldridge, da Queen Mary University of London, falou sobre as prioridades que devem constar em qualquer lei que trate da lavagem de capitais. Segundo ele, na Inglaterra, ao se melhorar a legislação para incluir outros crimes e criar obstáculos à lavagem de dinheiro por traficantes de drogas e terroristas, foi preciso criar uma perspectiva global envolvendo banqueiros, contadores, advogados, corretores imobiliários e de obra de arte.
Ele defendeu uma legislação mais eficaz para controlar a corrupção no setor público, com mais transparência, investigações e controle de falhas. “Precisamos compartilhar informações e conhecimento para ter uma boa luta contra a lavagem de capitais. Precisamos estar em todos os lugares, cobrir todas as regiões, fontes e mercados”, destacou.
O consultor do Banco Mundial Klaudijo Stroligo, da Eslovênia, disse que, para um combate efetivo à lavagem de capitais, é preciso identificar todas as lacunas existentes na legislação antes de reformá-la. Em sua opinião, a lei brasileira está de acordo com as leis internacionais, o que permite que as instituições internacionais de combate à lavagem de capitais trabalhem em conjunto com as autoridades do Brasil.
Ele defendeu o entendimento de que a caracterização da lavagem não dependa de prova do crime que originou os recursos ilícitos.
Flexibilização perigosa
Na opinião do delegado da Polícia Federal Ricardo Saad, representante do Brasil no Serviço Europeu de Polícia (Europol), a atual legislação sobre lavagem de dinheiro está adequada às necessidades do país, além de atender às exigências dos acordos internacionais assinados pelo governo brasileiro.
Segundo Saad, uma eventual flexibilização da lei de lavagem de dinheiro pode trazer consequências econômicas negativas para o Brasil. “Mudanças pontuais podem e devem ser feitas na lei de lavagem de dinheiro, mas mudanças estruturais não fariam bem para o país, nem do ponto de vista econômico nem do ponto de vista de política criminal”, concluiu.
De acordo com o delegado da Polícia Federal Elvis Secco – coordenador-geral de repressão às drogas e facções criminosas –, as organizações criminosas têm uma estrutura de advogados e contadores que são pagos com dinheiro lavado do tráfico de drogas. Ele ressaltou que, atualmente, as grandes operações têm sido feitas sem a necessidade de apreensão de drogas, somente baseada na legislação de lavagem de dinheiro.
“Qualquer alteração na atual lei pode prejudicar as operações da Polícia Federal contra as organizações criminosas envolvidas com tráfico de drogas e contrabando. Alterar o quantum da pena ou a necessidade de condenação anterior vai trazer um retrocesso muito grande no combate a esses crimes. Nossa luta é enfraquecer as organizações criminosas, e só conseguimos isso com a atual legislação de lavagem de dinheiro”, afirmou.
Inteligência financeira
O professor Michael Levi, da Universidade de Cardiff (País de Gales), disse ser preciso investir mais recursos na formação de uma inteligência financeira para combater melhor a lavagem de dinheiro. Segundo ele, no Brasil e em outros países do mundo, já existem diferentes mecanismos de combate à lavagem de capitais, mas ainda é preciso aumentar a diligência da polícia, dos bancos e das corretoras. Michael Levi acrescentou ser necessária uma troca de perspectivas, com mais autonomia e independência nas investigações envolvendo a lavagem de capitais.
Para o juiz Mateo Bermejo, do Poder Judicial de Mendoza, na Argentina, a aprovação da lei contra a lavagem de dinheiro foi fundamental para a melhor prevenção e repressão dessa prática.
Segundo o juiz, as condenações por esse tipo de crime têm crescido nos últimos anos, após o investimento governamental nas recomendações do Grupo de Ação Financeira Internacional contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi) – organização intergovernamental cujo propósito é desenvolver políticas nacionais e internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo.
“A lavagem de dinheiro tem relação com todos os tipos de crime, com o narcotráfico, com o tráfico de pessoas, com a corrupção pública. Portanto, é muito importante investir na prevenção e no combate aos delitos com uma legislação global e harmônica sobre o assunto”, finalizou.
Motivação
A sessão vespertina da audiência pública foi aberta pelo delegado da Polícia Federal Isalino Giacomet Júnior, para quem o combate à lavagem de dinheiro trouxe uma redução da criminalidade no Brasil. Segundo ele, não é necessária nenhuma mudança na legislação atual.
“O combate à lavagem de dinheiro é relevante para a sociedade, pois ajuda a combater o crime pela sua motivação, que são os ganhos ilícitos. A lavagem de dinheiro pressupõe um crime precedente, e quando a polícia ataca a lavagem de dinheiro estamos atacando a motivação, a causa do delito antecedente”, apontou.
A diretora do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional da Secretaria Nacional de Justiça, Sílvia Fonseca de Oliveira, apresentou um pouco do trabalho que tem sido feito pelo governo brasileiro em cooperação política internacional, prevenção e repressão da lavagem de dinheiro. Ela defendeu o fortalecimento do atual sistema.
“A Lei de Lavagem de Capitais objeto de revisão guarda uma estreita relação com as recomendações do Gafi. Em 2021, o Brasil vai ser avaliado, e isso terá uma repercussão econômica importante para o nosso país. Essa preocupação no cenário internacional com o enfrentamento à lavagem de dinheiro é vista em diversas convenções e sempre há uma preocupação muito grande em relação a uma uniformidade e harmonização entre as legislações e o sistema que ataca o crime da lavagem de dinheiro. Para enfrentar esse crime de uma maneira efetiva, temos que buscar a descapitalização das organizações criminosas”, afirmou.
Reforma
O professor Isidoro Blanco Cordeiro, da Universidade de Alicante, apresentou um pouco da experiência da Espanha – que, em 2010, fez uma reforma nos seus tipos penais, incluindo nas condutas típicas de lavagem de dinheiro a posse e a utilização de bens de origem ilícita.
Segundo ele, essa inclusão foi uma das mais importantes modificações na legislação espanhola, pois trouxe um aumento fundamental no âmbito de aplicação do tipo penal e representou uma importante adequação aos instrumentos internacionais de combate à lavagem.
O presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), Rodolfo Queiroz Laterza, defendeu que qualquer alteração na Lei 9.6 13/1998 siga as recomendações do Gafi, para que “não haja retrocessos nem sanções ao Brasil”.
Na opinião do delegado, é preciso garantir mais autonomia para o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e assegurar a autoexecutoriedade nos relatórios de inteligência financeira. “Também é importante incluir na legislação mecanismos de cooperação internacional, estruturando o Coaf e o Banco Central para tanto. Enquanto não temos o novo Código de Processo Penal, podemos ter a oportunidade de fortalecer isso na nova lei de lavagem de dinheiro”, acrescentou.
O presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo, Renato Silveira, falou sobre a atualidade da lei de lavagem de capitais e comentou a questão das criptomoedas. Segundo ele, é preciso um controle mais profundo no uso das moedas virtuais. “O que me preocupa é que uma cega adequação do Brasil às ponderações internacionais possa vir a gerar enormes debates, inclusive em sede judicial”, declarou.
Marcos internacionais
O procurador da República Vladmir Aras defendeu a manutenção da legislação de combate à lavagem de dinheiro de acordo com as recomendações internacionais dos diversos tratados dos quais o Brasil é signatário.
“Afastar-se dos marcos normativos internacionais, além de uma impossibilidade concreta – é impossível fazê-lo sem violar um direito internacional –, também é uma impossibilidade econômica, dado que pode ser um motivo para o Brasil entrar em uma daquelas listas de recriminação aprovadas por instituições internacionais”, observou.
A delegada da Polícia Federal Luciana Caires disse ser imprescindível manter na legislação a possibilidade de autonomia do crime de lavagem de dinheiro. “Mudar isso seria um retrocesso muito significativo para a investigação criminal, caso essa autonomia fosse relativizada”, destacou.
A audiência pública foi encerrada pelo delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro Flávio Porto, que destacou ser a legislação de combate à lavagem de capitais fundamental para enfrentar e desarticular o crime organizado e as narcomilícias no Brasil.
Na opinião do delegado, as forças de segurança pública precisam de apoio e incremento da legislação para o combate eficaz ao crime e a desarticulação financeira dos grupos criminosos. “Quanto mais recursos e ferramentas tivermos para trabalhar contra essas organizações criminosas, melhor para a segurança pública em geral”, concluiu.
Assista às sessões matutina e vespertina da audiência pública.